Oscar Micheaux é justamente considerado o pai do cinema afro-americano. Os filmes dirigidos por ele, que resistiram ao tempo, mostram sua determinação em fazer um cinema consciente e crítico, mesmo com poucos recursos. O cinema afro-americano sempre foi marginalizado e nasceu da necessidade de a população negra se ver representada nas telas, já que Hollywood retratava os negros de forma preconceituosa e estereotipada.
Com recursos limitados, os cineastas que se propunham a produzir os chamados "filmes étnicos" ou "filmes de raça" (race films) se arriscavam em dobro. Vale salientar que o intuito dos filmes afro-americanos era produzir um cinema feito por negros e para negros — embora, em algumas ocasiões, diretores brancos também tenham produzido race films.
No cinema mudo, era comum a produção de filmes com críticas sociais, e o cinema afro-americano não escapava dessa regra. O próprio Micheaux produziu "Nos Limites dos Portões" (Within Our Gates), considerado por muitos (com razão) sua obra-prima, que abordava questões como religião, charlatanismo e racismo dentro da própria comunidade negra. Outro filme notável, "A Marca da Vergonha" (The Scar of Shame), tratava de temas como prostituição e as diferenças sociais impostas pelos próprios negros em suas relações.
Em "Corpo e Alma" (Body and Soul), a crítica mais contundente é direcionada à religião e à forma como charlatões a utilizam para manipular e roubar os fiéis. Um prisioneiro fugitivo chega a uma pequena cidade e se faz passar por um reverendo. Usando sua posição, ele passa a extorquir e manipular os frequentadores da igreja, além de se envolver com jogos de azar. Um ex-colega de penitenciária se junta a ele, e juntos passam a aplicar golpes. Uma das vítimas, uma frequentadora da igreja, tem suas economias roubadas e sua filha estuprada pelo falso pastor. A jovem, sabendo que a mãe não acreditaria nela, decide ir embora e assumir a culpa pelo roubo do dinheiro. A mãe então passa a procurá-la por diversos lugares, até reencontrá-la e descobrir a verdade. Após uma tragédia, ela decide desmascarar o impostor.
Os filmes do cinema afro-americano também foram vítimas da negligência em sua preservação. Por serem majoritariamente mudos e por tratarem de questões raciais, muitas obras foram propositalmente perdidas. O corte original de "Corpo e Alma" desapareceu. A versão que chegou até os dias de hoje é editada. Embora essa versão não comprometa a mensagem central do filme, dá indícios de que a original poderia ter sido ainda mais ácida e crítica. Segundo fontes, Micheaux produziu 26 filmes mudos. Atualmente, apenas três sobreviveram: "Corpo e Alma", "Nos Limites dos Portões" e "O Símbolo do Inconquistado" (The Symbol of the Unconquered), além de alguns filmes sonoros.
Mesmo sofrendo com as limitações de um orçamento apertado e com certas deficiências de roteiro e edição, "Corpo e Alma" consegue, mesmo após quase 100 anos de seu lançamento, se manter atual, trazendo à tona questões relevantes da sociedade e provocando debates até hoje.
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