Alice Guy é considerada a "mãe" do cinema, por ser a primeira mulher a dirigir e produzir filmes no início do cinema. Foi também a pioneira no uso de colorização de filmes, roteirização, além de efeitos especiais e também por ser uma das poucas cineastas a trabalhar com elenco interracial, numa época onde a maioria dos diretores preferiam o uso do famigerado Blackface, A história de Alice Guy é fascinante e ao mesmo tempo triste, pois foi uma cineasta e mulher à frente de seu tempo, inovando nas técnicas cinematográficas, mas com o passar do tempo, ainda em vida, viu algumas de suas obras serem atribuídas a outros diretores e lutou contra essa injustiça, mas após sua morte, acabou sendo renegada e esquecida por muitos anos, sendo redescoberta e valorizada nos últimos anos graças ao movimento feminista dentro da indústria cinematográfica.
Após a morte de seu pai, Alice aprendeu o ofício de datilografia e começou a trabalhar em uma empresa de verniz. Em 1894, começaria a trabalhar como secretária de Léon Gaumont, em uma empresa de fotografia que logo decretaria falência. Gaumont comprou o acervo e abriu sua própria empresa que se tornaria uma potência na produção de filmes na França. Assim nascia a Gaumont Film Company.
Alice começou a se interessar pelo processo de produção de filmes e em 22 de março de 1895, estava presente na exibição de "A Saída dos Operários da Fábrica Lumière" (La Sortie de l'usine Lumière à Lyon). Após a exibição, ela percebeu o potencial dos filmes e viu que poderia usá-los como um instrumento para contar histórias ficcionais e não apenas para uso documental ou científico como eles seriam usados no início do cinema. Ela então pediu para Gamount uma autorização para filmar em seu tempo livre. Gaumont permitiu e assim Alice começou seu ofício como diretora e produtora.
"A Fada do Repolho" (La Fée aux choux) de 1896, seria a sua primeira obra cinematográfica. É considerada também a primeira obra com narrativa cinematográfica, além de ter sido o primeiro filme dirigido por uma mulher. Esta versão é considerada perdida. Alice refilmou a história duas vezes: em 1900 e 1902. Com a novidade e o sucesso de seu primeiro filme, Alice tornou-se chefe de produção da Gaumont entre 1896 a 1906, sendo nesse período a única mulher a produzir filmes.
Muitos de seus primeiros trabalhos eram semelhantes aos contemporâneos Méliès e irmãos Lumière. Alice chegou a viajar para a Espanha e a filmar o estilo de vida dos espanhóis. Também fez filmagens de dança de serpentina, bastantes populares nesse período. Em 1906, ela filmaria "A Vida de Cristo" (La Vie du Christ), trabalho que iria diferenciá-la dos seus contemporâneos. O filme é considerado a primeira grande produção da história do cinema. Contou com 300 figurantes e foi o grande sucesso da Gaumont até então.
Em 1910, ao lado do marido Herbert Blaché, até então encarregado da produção e operação dos filmes da Gaumont nos EUA e de George A. Magie, funda a Companhia Solax, que se tornou um dos maiores estúdios de cinema Pré-Hollywood. Com isto, Alice tornou-se uma das primeiras mulheres a dirigir um estúdio. Herbert era diretor de produção e fotografia, enquanto Alice dirigia a maioria dos lançamentos do estúdio.
Em 1913, Alice transforma Herbert em presidente da Solax, para assim se dedicar apenas a produção de filmes, deixando o lado burocrático com o marido. Herbert não feliz em trabalhar para a esposa, decide fundar sua própria produtora. A empresa de Herbert, a Blaché Features, torna-se um grande sucesso, eclipsando a Solax de Alice. Em 1918, Herbet parte para Hollywood, deixando Alice e os dois filhos, além da Solax repleta de dívidas. Um período bastante turbulento na vida de Alice, que na época estava dirigindo seu último filme e quase morrera de gripe espanhola.
Em 1922, após o divórcio, Alice retorna para a França, tentando restabelecer-se como diretora, mas percebe que fora esquecida em seu país de origem. Um outro golpe amargo foi ter que leiloar seu estúdio que já estava falido. Alice ainda retornou aos EUA, em 1927 para dirigir filmes, mas não obteve sucesso na investida. Decidiu então nunca mais dirigir filmes.
Alice Guy não é apenas a primeira mulher a dirigir e a produzir filmes na história do cinema. Foi a primeira mulher a trazer para o cinema críticas sociais, algo que outras mulheres na direção como Lois Weber também fariam posteriormente.
Uma de suas obras mais famosas, "As Consequências do Feminismo" (Les Résultats du féminisme), debocha da visão masculina sobre o Feminismo. Muitos homens achavam (e infelizmente ainda acham), que o Feminismo nada mais é que uma imposição da mulher sobre o homem. E o curta debocha justamente dessa visão arcaica, trazendo mulheres vestidas como homens, agindo como homens e colocando os homens nos papéis femininos. Alice usou esse curta pra mostrar que o Feminismo é igualdade e não opressão.
"Algie, The Miner", é outra obra que debocha da visão machista. Aqui, Alice traz Algier, um homem sensível e até mesmo afeminado, que é cobrado por outros homens, a ter uma postura de "homem macho".
"A Fool and His Money", de 1912, é considerado um dos primeiros filmes a utilizar um elenco totalmente composto por atores e atrizes negros. E é um dos (poucos) filmes que trazem os negros nos papéis principais e como pessoas ricas. Foi um projeto bastante à frente de seu tempo, já que os homens na direção sempre faziam uso do blackface em suas produções. Um exemplo clássico é D.W. Griffith e seu show de horrores em "O Nascimento de Uma Nação" (The Birth of a Nation) de 1915.
"A House Divided", um curta que aborda em tom cômico, um casal que após desconfianças de infidelidade, decidem viver separados na mesma casa em nome das aparências, já que o divórcio não era algo bem visto na época.
Alice, na década de 40, escreveu sua autobiografia, que seria publicada em francês em 1976. Começou a perceber que além de esquecida, a maioria de suas obras, a direção era creditada a homens. Alice então começou uma luta que iria até o final dos seus dias: a luta pelo reconhecimento do seu legado na história do cinema. Criou uma lista com todos os filmes que produziu, em busca de justiça e reconhecimento para com sua obra. Alice morreu em 24 de março de 1968, aos 94 anos, lutando pelo seu reconhecimento na história do cinema.
Na década de 50, ainda recebeu duas homenagens, mas após sua morte, entraria em completo esquecimento. Na década de 70, após a publicação de sua autobiografia, começou um modesto resgate de sua memória. Nos anos 80, sua obra começaria a ser resgatada e restaurada. Na década de 2000, seu nome saiu da obscuridade e diversas homenagens foram feitas. Documentários foram produzidos e seu nome e legado foram redescobertos. Graças ao movimento feminista que havia chegado ao cinema na década de 2010, sua obra voltaria a pertencê-la.
Para quem quiser conhecer mais sobre o trabalho de Alice-Guy, recomendo a caixa "As Pioneiras do Cinema", que conta com a minha curadoria, junto ao Thiago Alves, lançada pela Obras-Primas do Cinema. Além de Alice, a caixa traz também o trabalho de outras cineastas do cinema mudo como Lois Weber e Mabel Normand.
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