Bette Davis pode ser facilmente nomeada a maior atriz de todos os tempos, caso isso não seja possível, ela sempre estará entre as primeiras. Bette era uma atriz que não fugia de um papel desafiador. Bette possuía uma beleza que não era (e às vezes até hoje não é) bem aceita e compreendida. Graças a esse fator, Bette muitas vezes aceitou alguns papéis que a maioria das atrizes por medo de serem estigmatizadas, recusavam. Bette não era vaidosa e por um bom papel estava disposta a fazer qualquer coisa. Bette Davis se tornou conhecida por interpretar na maioria das vezes mulheres más, feias e ambiciosas, mas nem sempre Bette interpretava esse tipo de papel. Suas heroínas também eram personagens fortes e apaixonantes e muito da personalidade de Bette era inserida nesses papéis. Uma das heroínas mais famosas e amadas interpretadas por ela, foi a romântica e sofrida Charlotte Vale de "A Estranha Passageira" (Now, Voyager) de 1942.
Em "A Estranha Passageira", Bette interpreta Charlotte Vale, uma moça tímida e com problemas de baixa autoestima, causados pela mãe e por alguns familiares. Após uma crise de nervos, Charlotte é encaminhada pelo doutor Jaquith (Claude Rains) para um sanatório chamado "Cascade". Após passar uma temporada no sanatório, onde começa a se reencontrar, Charlotte parte em um cruzeiro para o Brasil e Argentina. Ao chegar no cruzeiro, Charlotte é uma nova mulher, com uma aparência totalmente diferente da que tinha antes: magra, elegante e bastante atraente. Porém a mudança ocorreu apenas por fora. Por dentro os conflitos antigos a acompanham. E o filme torna-se fascinante por isso, por justamente não resolver os problemas da protagonista como uma passe de "mágica". A partir dali, Charlotte tem que enfrentar todos os seus medos e permitir ser feliz e ser dona da sua vida e de suas decisões. No cruzeiro, Charlotte conhece Jeremiah (Paul Heinred) um arquiteto casado e frustrado. Após passarem um tempo juntos, eles se apaixonam, porém a viagem chega ao fim e ambos decidem romper o contato.
Charlotte agora tem que voltar para casa e botar em prática tudo o que aprendeu em "Cascade", se impondo para sua mãe e mostrando para ela que a partir daquele momento ninguém mais poderá humilhá-la ou controlá-la, porém as coisas não serão fáceis, já que Mrs. Vale (Gladys Cooper) está disposta a voltar a manipular a filha. O destino porém volta a unir Charlotte e Jerry, quando em "Cascade", Charlotte conhece por acaso Tina (Janis Wilson) a filha rejeitada pela mulher de Jerry e que de certa forma faz Charlotte se lembrar de como ela era no passado. Charlotte então decide ajudar a filha do seu grande amor, como forma de gratidão por ele ter ajudado-a quando ela mais precisava.
Curiosamente nem de longe Bette Davis era a primeira opção para o papel de Charlotte Vale: Norma Shearer e Irene Dunne foram as primeiras opções para o papel. Ginger Rogers quase ficou com o papel, porém quando Bette soube do projeto, conseguiu ficar com o papel principal. O filme é baseado em um livro homônimo escrito em 1941 por Olive Higgins Prouty. O livro fazia parte de uma saga de cinco livros sobre a família Vale e foram escritos entre 1936 e 1947. "Now Voyager" era o terceiro desses cinco livros.
As gravações foram marcadas por alguns tumultos entre Bette Davis e Irving Rapper, o diretor. Algumas pessoas da produção chegaram a dizer que quem realmente dirigia o filme era Bette Davis. Além das brigas, a produção contou com atrasos que prejudicaram o cronograma de gravações e que atrasariam "Casablanca", filme que contava com Claude Rains e Paul Heinred e que se tornaria um dos maiores clássicos do cinema. Os atrasos fizeram com que a produção de "Casablanca" fosse adiada, pois Rains e Heinred ainda estavam presos na produção de "A Estranha Passageira".
Bette Davis se envolveu profundamente tanto na produção do filme, quanto na composição da personagem. Bette dava palpites em relação ao figurino, roteiro e chegou até a ter certa influência na escolha do ator que faria seu par romântico. Ao ser escolhido, Paul Heinred se sentiu incomodado com o figurino e com o corte de cabelo de seu personagem. Bette também. As sugestões de Bette fizeram com que Paul se sentisse mais confortável em desenvolver seu papel. Bette também fez o máximo para tornar Charlotte bastante feia na primeira parte do filme e sugeriu que a personagem fosse gorda e que usasse vestidos com tamanhos maiores, além dos óculos e das sobrancelhas grossas.
"A Estranha Passageira" acabou sendo um grande sucesso de bilheteria e crítica e Bette Davis recebeu sua quinta indicação ao Oscar consecutiva em cinco anos, iniciada em 1938 por "Jezebel", "Vitória Amarga" (Dark Victory) (1939), "A Carta" (The Letter) (1940) e "Pérfida" (The Little Foxes) (1941). O trio principal do filme (Bette, Rains e Heinred) e o diretor Irving Rapper, fariam outro filme juntos: "que o Céu a Condene" (Deception) em 1946.
Charlotte Vale é uma personagem frágil e sensível, que sofre ataques psicológicos da mãe, além de sofrer bullying declarado de sua sobrinha June (Bonita Granville). Charlotte se sente como um "patinho feio", perdida e sem saber o que fazer para se encaixar em algum lugar. Finalmente ela tem a chance de conhecer o mundo e se conhecer, rompendo a bolha claustrofóbica que a prende e lhe faz mal. Ao ver que ela é uma pessoa que possui capacidade, talento e força, ela permite-se pela primeira vez na vida, ter coragem de tomar suas decisões e não deixar ser controlada pela mãe e nem ser humilhada pela sobrinha. Ela conhece o amor e tem noção de que as coisas dali pra frente não serão fáceis, porém ela continua evoluindo e não desiste de se tornar uma pessoa melhor. E quando encontra alguém em condições semelhantes as quais passou, Charlotte passa a ter noção do quanto evoluiu e do quanto ela não sente mais medo de ser quem ela é. Talvez por isso, seja tão fácil amar e se identificar com Charlotte Vale. Cada um de nós temos uma Charlotte Vale conosco.
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